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A Aurora - relato de um parto por um pai.

Foto do escritor: Daniel PradoDaniel Prado

Atualizado: 19 de jun. de 2020


São Paulo, Quarta-feira, 27 de Maio de 2020, 9h46, UMA HORA ANTES DO PARTO...


Olho para o corredor e lá está a maca. Bianca deitada nela, gritando de dor como eu jamais havia visto. Meu coração está em pedaços, mas eu vou até ela e sussurro no seu ouvido dizendo que ela é a pessoa mais forte que eu já conheci e que tudo vai ficar bem.

Três ou quatro enfermeiras empurrando a maca e eu, com uma mochila nas costas olhando a cena sem saber muito o que fazer, mas com a certeza plena de que toda a admiração que eu tinha por aquela mulher agora se elevava a potências inumeráveis.

Ela entra em uma sala e me deixam do lado de fora ouvindo seus gritos de dor sem poder fazer nada. Me colocam diante de uma porta fechada, apertam um botão de interfone e me pedem pra aguardar.

Aguardar?!


DOIS DIAS ANTES


Segunda-feira, 25 de Maio.


As malas estavam prontas. Roupinhas, fraldas e tudo o que um bebê deveria precisar logo depois de nascer.

Na minha mochila, minha câmera, meu kindle, baralhos, meu cubo mágico e mais uma ou outra coisa pra me distrair caso eu precisasse enfrentar mais de vinte horas de parto e três dias de internação no Sepaco.

Estávamos a um dia de entrar na 38ª semana e Bianca me diz que está sentindo a barriga dura o dia inteiro e me conta que está com um pressentimento de que nossa filha iria chegar no dia seguinte.

Eu passei todas essas semanas imaginando como poderia ser esse dia, mas, estava disposto a enfrentar o que viesse, afinal, eu já havia entendido que criar um filho é se abrir ao inesperado.

No dia seguinte, teríamos uma consulta no Coletivo Nascer ao meio dia.


Terça-feira, 26 de Maio.


SEPACO I


Bianca acordou bem e aquela sensação de que a Aurora poderia nascer a qualquer momento deu uma leve aliviada.

Por via das dúvidas, como iríamos pegar a estrada para São Paulo, carregamos o carro com quase tudo. Ficou faltando um pote de Açaí, uma ou outra comida e deixar a chave para a Solange, nossa vizinha, que daria uma olhada nos gatos.

Carregamos as baterias dos celulares e pegamos a estrada.

Bianca passou com a obstetriz do Coletivo enquanto eu esperava no carro, já que era uma sugestão deles de que ninguém além da grávida entrasse na consulta, em função da pandemia.

Bianca entra no carro e diz que a pressão dela estava alta e que a Obstetriz recomendou que fôssemos até o Sepaco fazer um exame e que dependendo do resultado, ela poderia ser internada por segurança.

Sepaco é um hospital na Vila Mariana, em São Paulo, onde a equipe do Coletivo nos auxiliaria no parto da Aurora.

Chegamos no Sepaco às 14h, no P.S. geral e mandaram a gente subir. Entramos por uma porta, subimos um elevador e nos vimos sozinhos no meio do hospital. Ninguém pra dar uma assistência.

Uma pergunta aqui e outra ali e a gente se achou.

Me espantei com a rapidez da triagem que levou pouco mais de 10 minutos.

Então, quando eu já estava achando que tudo ia bem...


SEPACO II


Duas horas depois, nada do nome da Bianca aparecer na televisãozinha que avisa os pacientes. A essa altura, eu estava esperando no carro porque, é claro, minha rinite escolheu esse dia pra me atormentar e eu tocava tanto meu rosto, que achei mais seguro esperar no carro.

Conversava com a Bianca por WhatsApp e pedi a ela que investigasse, já que duas horas é tempo demais para ela retornar.

Ela foi e descobriu que haviam se enganado e não a chamaram mesmo.

Enfim, ela foi atendida e mais de três horas e meia depois, saíram os resultados e fomos falar com a médica.

Já era umas 20h30 e a médica nos informou que os exames estavam bons e que poderíamos ir pra casa, mas, que ela avisaria as médicas do coletivo

Pegamos o carro e fomos encontrar algum lugar pra comer.

Paramos o carro em frente a uma pizzaria e então recebemos uma ligação do Coletivo dizendo que eles decidiram internar a Bianca a fim de induzir o parto, já que a pressão dela estava um pouco alta e a Aurora estava um pouco menor que o esperado.

Como ela havia acabado de fazer os exames e as malas estavam no carro, e a essa altura já era quase 22h, seria mais fácil fazer a internação e conseguir um quarto.

Deixamos a pizza pra lá e voltamos para o Sepaco.


SEPACO III


A internação correu relativamente bem. Não foi rápido, mas também não demorou tanto.

Entramos no quarto por volta da meia-noite. Era uma enfermaria com mais duas grávidas que já haviam tomado o comprimido de indução.

Bianca comentou comigo que seria induzida por volta das 4 da manhã e eu então decidi voltar pra casa em Mogi das Cruzes, pra pegar o resto das coisas e deixar a chave para a vizinha.


Quarta-feira, 27 de Maio

A essa altura, meu celular (que já vinha tendo problemas com a bateria) resolveu que não queria mais trabalhar pra mim e não aceitava mais carga nenhuma. Coloquei em modo de economia de energia máxima e esperei pelo menos chegar até uns 10% pra então eu usar o Waze pra chegar em algum lugar conhecido e então pegar o caminho de casa.

Saí do Sepaco por volta da 1h, entrei no carro, liguei o GPS, andei por 2 minutos e o celular morreu.

Eu não conheço nada da região da Vila Mariana, então, fiquei perdido por uns 20 minutos andando sem rumo, tentando encontrar algum ponto de referência pra me colocar no caminho de casa.

Depois de pedir informação umas duas vezes, encontrei o caminho de casa e fui embora.

Peguei o que faltava e Bianca me avisou que só seria induzida às 6h. Deu tempo até de torrar um café e tomar um banho, já que eu sabia que banho poderia ser algo distante pelos próximos dias e passar tudo isso sem café seria insano!

Achei um celular emprestado do meu sogro em casa, carregado, troquei os chips e peguei o rumo pra São Paulo.

Cheguei no Sepaco umas 5h30.

Nessa hora, uma das grávidas já tinha saído do quarto e eu podia ouvir a outra começando a ter umas contrações.

Longe de mim relativizar a dor dela, mas me parecia que ela estava segurando bem. Já fazia umas quase seis horas que ela tinha sido induzida.

Disseram pra mim e pra Bianca que poderiam ser necessários até 4 comprimidos de Misoprostol e 24 horas para que o trabalho de parto se iniciasse.

Bom, eu estava com coisas na mochila pra passar o tempo, eu estava preparado.

Ou estava?


SEPACO IV


6h – Bianca recebe o primeiro comprimido.

8h – Bianca relata algumas cólicas leves.

Ela ainda mantém contato com a Paty, nossa Doula e com a Mika do Coletivo, que disseram que chegariam ao Sepaco por volta das 11h, um pouco antes do segundo comprimido.

8h38 - eu dou play no aplicativo pra contar contrações e começo a sentir que ela está sofrendo mais do que a grávida que passou a noite do nosso lado.

São cinquenta e poucos segundos de contração e quase quatro minutos de intervalo.

Outra contração.

Cinquenta segundos e pouco mais de três minutos de intervalo.

Se eu tinha feito minha lição de casa, aquilo significava que Bianca já estava em trabalho de parto.

Em poucos minutos, Bianca já começa a adentrar a tão esperada e temida partolândia.

Só que pelas minhas contas, da Bianca e do resto da equipe que ainda não estava lá, ainda faltavam umas três horas, no mínimo, pro tal misoprostol fazer efeito.

Começo a me comunicar com a Mika e a Paty pelo WhatsApp da Bianca e elas não pareciam estar preocupadas, já que só havia se passado duas horas e meia da indução.

Eu tenho poucos minutos pra falar com as duas, fazer uma tentativa de massagem na Bianca, que vai sofrendo um pouco mais a cada contração.

Mika sugere que a Bianca peça por Buscopan.

A gente chama a enfermeira que diz que vai ver com alguém que saiba quem é que conhece a pessoa que sabe como ministrar o Buscopan. Sepaco né?

Mika me pede então pra colocar a Bianca em baixo do chuveiro quentinho.

Celular na mão, whatsapp, timer e lá vamos nós tentar encontrar o ponto inexistente em chuveiros de hospital/hotel: o tão sonhado “morno”.

Parece haver uma espécie de Nárnia ou Beco Diagonal entre aquelas malditas torneiras azul e vermelha que só podem ser acessadas por meio de algum encantamento mágico.

Passo mais de dez minutos tentando todo tipo de combinação possível entre os níveis diferentes de abertura daquelas torneiras enquanto Bianca se mantém agachada no chão, sofrendo, tentando controlar o timer, me xingando e pedindo pelo amor de deus pra eu deixar o chuveiro pra lá.

Passa meia hora, nada de doula, nada de Mika e nada de Buscopan.

Agora são 9h40, eu chamo a enfermeira que decide fazer um exame na Bianca e então escuto:

“Você está com OITO CENTÍMETROS de dilatação. Já estamos chamando uma maca pra te levar pro centro obstétrico. Você vai ter sua filha!”

Wuuut?

Só tenho tempo de enviar uma mensagem pra Mika:

“Oito centímetros!”

Mal tenho tempo de colocar meu tênis, pegar minha mochila e ir atrás.

Tinha chegado a hora.

Apenas três horas e quarenta depois da indução, estávamos nós, percorrendo os corredores do hospital e meu coração partindo vendo o amor da minha vida deitada na maca morrendo de dor.


UMA HORA ANTES DO PARTO


- “Fique aí que alguém vai abrir pra você, você vai se paramentar e já vai ficar com sua esposa”

Um minuto. Dois minutos. Aperto o interfone. Três minutos. Aperto o interfone, aperto o interfone, aperto o interfone, aperto o interfone…

Alguém abre e me diz: "Coloca sua mochila ali naquele armário. Escolha um, digite uma senha e coloque ali."

Sério?

Eu estava relativamente calmo, mas nada como uma mais uma enrolação pra testar essa calma. Perco mais alguns minutos tentando em vão achar um armário vazio e guardo a câmera que eu levei pra fotografar aquele momento. Paciência.

A importância daquele momento é tão devastadora, que tudo o que importa é ver os dois amores da minha vida bem e saudáveis.

Coloco a roupa do Grey’s Anatomy e sigo a direção do choro e dos gritos da Bianca.

Entro na sala de cirurgia (sem saber que era uma sala de cirurgia) e encontro a Bianca deitada na maca e uma meia dúzia de pessoas, com roupas de hospital de cores diversas, tinha verde claro, azul e alguns usando uma roupa bordô.

No momento em que eu saí da enfermaria, rumo ao centro obstétrico, Paty e Mika já tinham compreendido a urgência da situação e já estavam a caminho do hospital, mas ali na sala, não tinha ninguém da nossa equipe.

Bianca na cama sofrendo e a equipe do hospital olhando, sem fazer muita coisa e dizendo: ela é do Coletivo, a gente não pode pôr a mão nela.

Nossa decisão pelo Coletivo foi especialmente pelo fato de que a violência obstétrica é algo praticado em demasia pelo Brasil e pelo mundo. Em um momento como aquele, sem saber o que é ou não necessário e urgente, a mãe e o pai podem dizer sim pra tudo o que qualquer pessoa vestida de ‘médico’ sugira.

Só que o anestesista ali, que parecia o médico chefe daquele plantão, tinha sim uma responsabilidade, então, ele tomou uma série de medidas pra garantir a saúde da Bianca e da Aurora e por isso eu só posso ser grato.

Mika e Paty chegam à sala e nos avisam que a Daniela, médica de plantão do Coletivo já estava passando todos os sinais vermelhos pra chegar até nós o quanto antes.

Bianca agora está sofrendo demais e não encontra uma posição confortável e fica dizendo que a Aurora está saindo.

O anestesista então pergunta pra Bianca se ela quer uma analgesia e Bianca diz que sim.

Ela senta, e ele coloca uma agulha do tamanho de uma agulha de tricô (tá, exagerei um pouco, admito) na coluna dela e poucos minutos depois, Bianca vai voltando aos poucos a recobrar a serenidade.

Essa analgesia é uma dose leve de anestesia que permite que a Bianca possa se levantar.

Felizmente a médica do Coletivo chega, Daniela, e pergunta pra Bianca se ela quer se sentar na banqueta pra ser examinada.

Bianca senta, Daniela começa a examiná-la, enquanto a Mika mede o coração da Aurora e a Paty faz uma massagem nas costas da Bi.

Depois de tentar algumas vezes, Daniela avisa que o coraçãozinho da Aurora não está se recuperando tão bem e pergunta se pode usar o vácuo. Vácuo é uma espécie de desentupidor de pias que se acopla na cabeça do bebê pra ajudar no processo.

Bianca diz que sim e na primeira tentativa, a Aurora decide que o quentinho do útero está mais gostoso.

Na segunda, Bianca começa a fazer força e eu começo a ver o vácuo saindo com mais dificuldade, vagarosamente, enquanto Bianca faz seus últimos esforços.

10h45 - Eu digo: "Ela está vindo meu amor! Ela está vindo!"

10h46 - Acontece o momento mais mágico da minha vida toda. Nasce um universo.

Aurora!

Ela cai como um pacotinho de dentro da Bianca, e Daniela, ágil como um goleiro pegando um pênalti na final de uma copa do mundo, pega aquela vidinha no ar.

Aurora vai direto pro colo da Bianca e desde então, não saiu um segundo de perto da gente.

Nada disso seria possível sem toda a atenção e carinho da Mika, da Daniela, da Paty e de cada uma das pessoas que fazem parte do Coletivo Nascer.

O Sepaco deu uma dorzinha de cabeça, mas também teve seu papel de importância.

Das coisas que eu levei na mochila, a única que eu tirei durante todo o tempo foi minha câmera. Eu estava muito ocupado admirando e cuidando dos maiores bens que eu tenho na vida, Bianca e Aurora!







 
 
 

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